“Ouverture”

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“Brisas de Bissau” – Kindle

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Ansanm pou lapé

Ainda em 2004, quando servia como oficial do Exército Brasileiro, em São Leopoldo/RS, acompanhei os preparativos de partida do primeiro contingente brasileiro para a MINUSTAH.  Embora eu não fizesse parte do grupo que estava sendo mobilizado, tive a impressão de que em algum momento acabaria contribuindo com o esforço brasileiro para estabilizar e desenvolver o Haiti,  país mais pobre das Américas, cujo processo de independência – antes mesmo do brasileiro – tem inspirado tantas pessoas ao longo dos últimos dois séculos.

 

Quatro anos mais tarde, em 2008, substituí a farda camuflada pelo terno – a defesa pela diplomacia- e, tão logo concluído o curso de formação no Instituto Rio Branco, em fins de 2009, decidi me voluntariar para servir na Embaixada brasileira em Porto Príncipe, sem imaginar, naturalmente, a catástrofe que viria a seguir, em 12 janeiro de 2010.  Os  trinta e cinco segundos de revolta da natureza foram devastadores, deixando mais de 230 mil mortos e um país a ser reconstruído.  Cheguei na ilha cinco meses depois, ainda bastante inseguro, porém motivado e de certa forma destemido.

 

Logo pude perceber o enorme potencial humano na antiga “Pérola do Caribe”.  Encontrei um povo resiliente e alegre, embora sofrido com tantas tragédias, e de certa forma resignado com as inúmeras adversidades do dia-a-dia.  Encantei-me rapidamente com o ritmo musical kompas, que não deixa haitiano sentado; com a beleza da art naïf e sans soleil; com a culinária crèole – e seu tempero inigualável (baianos que me perdoem), sem olvidar as praias de água azul-turqueza (ah, Jacmel, Côte des Arcadins!), com enorme potencial turístico, que tantos momentos aprazíveis me proporcionaram.

 

Os três anos vividos no país (2010-2013) me permitiram acompanhar muitos dos esforços internos e externos para aliviar a dor pós-tragédia. Os haitianos fizeram  empenho notável para superar o trauma da perda de familiares e amigos, sem que o processo os privasse da esperança e  da força necessários para reconstruir e recomeçar. O protagonismo brasileiro neste momento de tantos desafios foi inegável.  Lá construímos quatro hospitais de referência, mantivemos sólida assistência humanitária e cooperação técnica, desenvolvidos em ambiente seguro e estável graças à MINUSTAH, em patrulha 24 horas por dia nos dez departamentos do país. Para o jovem diplomata em início de carreira, a atuação brasileira de fato revelava-se “ativa, altiva e solidária”.  Tive, ainda, o prazer de conviver com bravos e comprometidos representantes da sociedade civil brasileira, a exemplo das ongs Viva Rio, Via Campesina, ActionAid, World Vision e diversos grupos religiosos.

 

Não posso negar ter havido momentos de frustração.  Ainda é reduzida a participação dos haitianos nos processos eleitorais (25%); é inaceitável a “cultura” dos “restavec”, mais de 200 mil crianças mantidas em regime de semi-escravidão no país; é intrigante a eficácia questionável de boa parte da ajuda externa, muitas vezes descoordenada e desalinhada das prioridades do governo local; é incompreensível a falta de recursos para combater a epidemia de cólera, que já ceifou mais de nove mil vidas.  Aprendi, neste período, quão alto é o custo de manutenção de organizações filantrópicas estrangeiras, que chegam a consumir a maior parte (2/3!) da ajuda recebida pelo país.

 

O saldo da experiência, no entanto, é extremamente positivo, sem dúvidas.  A bandeira brasileira é mais do que respeitada, é venerada pelos haitianos, devotos da seleção brasileira de futebol. O “Brazilian way of peacekeeping” é igualmente admirado e estudado por vários países, e até mesmo pela ONU, que comumente se refere a nossas tropas como “de elite”.  O terreno me mostrou, inter alia, a importância da cooperação sul-sul; do diálogo civil-militar; do papel conciliador das mulheres nas comunidades; dos projetos de impacto rápido e de redução de violência comunitária, cruciais para a consolidação da paz.

 

Como muitos que me antecederam, e me sucederam, deixei o Haiti marcado indelevelmente pela intensa jornada.  Que o recente fluxo migratório haitiano para o Brasil sirva para selar ainda mais nossos vínculos históricos de amizade e respeito mútuo.

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A Tragédia Chilena

(versão original em Espanhol em “Letras de Chile”, maio de 2016)

El drama ocurrió en Chile, para mal de los chilenos, pero
ha de pasar a la historia como algo que nos sucedió
sin remedio a todos los hombres de este tiempo y
que se quedó en nuestras vidas para siempre

García Márquez

A filha, a secretária e companheira, os assessores mais próximos, todos discutem como contar-lhe. Que as Forças Armadas deram início ao golpe. Que já não é possível o plebiscito, tampouco o acordo com os democrata-cristãos. Que sobrevirá uma ditadura, ou uma guerra civil. Que o tão temido desfecho traz, paradoxais, desespero e alívio. É quando ele, Salvador Allende, adentra a sala com passos resolutos, em ensaiados gestos alegóricos, mosaico dos personagens de teatro que admirou durante a vida. Transmite ordens, sugere ações, provoca debates.

Corre-nos um arrepio ao vê-lo ali, tão vivo, tão próximo em suas últimas horas, na madrugada do 11 de Setembro chileno, na residência da rua Tomás Moro. É a encenação de Allende noche de septiembre, no Centro Cultural Gabriela Mistral (GAM). Estamos em setembro de 2013, quadragésimo aniversário do golpe, ano em que o enredo conduzirá à catarse.

O fechamento de um presídio especial para militares, condenados por violações de direitos humanos, levará ao suicídio de um general. No cinema estrearão El tío, sobre a vida de Jaime Guzmán, ideólogo da ditadura e da Constituição de 1980; e Carne de perro, sobre os transtornos psicológicos de um ex-torturador. Na televisão, um ex-chefe das Forças Armadas será confrontado – ao vivo – com o homem que, quando bebê, entregara a freiras, após a execução dos pais. No teatro, inúmeras peças retratarão o período autoritário, os desaparecidos, as mortes. As eleições presidenciais terão candidato cujo pai foi morto pela ditadura. A coroar a dramatização, o segundo turno colocará frente a frente duas filhas de generais – um, Fernando Matthei, ex-integrante da Junta Militar; outro, Alberto Bachelet, ex-integrante do Governo Allende, preso e morto após o golpe.

Quatro décadas depois, os atos seguirão obedecendo à cenografia urbana. O espaço cênico terá como marco a Plaza Italia, onde começa a surgir o barrio alto, como é chamada a região mais rica. A Província de Santiago tem 52 municípios, as comunas, entre elas Santiago “Centro” e as mais prósperas – Vitacura, Las Condes, Providencia e Lo Barnechea, as únicas onde a direita teve vitória folgada nas eleições. O Teatro Municipal de Las Condes apresentará Kiss and Cry, espetáculo belga de nanodança. A apenas sete estações dali, o GAM, polo cultural do centro, apresentará peça sem falas, de personagens mudos. Uma família refém da lembrança, presa à mesa de jantar, à espera do filho que desapareceu.

* * *

No teatro da Grécia antiga, a tragédia era o gênero que induzia os espectadores a refletir sobre a existência e a desventura humanas. Desnudava, sem distinção de papéis, as íntimas manifestações de sua essência – amor, ódio, medo, vaidade. Ação, tempo e espaço eram tomados por forças antagônicas, que se contradiziam reciprocamente, até que o herói passasse da felicidade para a infelicidade. O público era conduzido ao transe da catarse, da purificação, liberando emoções como compaixão e terror, enquanto o coro temia a ruína da cidade.

Desde então todo país tem suas próprias montagens trágicas. Meu primeiro contato com a versão chilena ocorreu no palco do Estádio Nacional, em 2005. No clássico Universidad de Chile contra Colo-Colo, torcidas rivais entoavam o mesmo cântico, olê, olê, que se muera Pinochet! No intervalo, torcedores da “U” acenderam velas, estenderam uma faixa sobre as antigas arquibancadas de madeira. Allende presente, dizia.

Cinzenta, fria e chuvosa naquele inverno, a capital do Chile era a primeira cidade que conhecia na América do Sul. Hospedado em um hostel de Providencia, surpreendi-me com os tradicionais cafés con piernas, de garçonetes em trajes sumários. Percorria ruas e cidades sem noção do que representava estar Allende, estátua serena sob a chuva fina, diante do Palácio de La Moneda. Do que representava o resto de seus óculos, no Museu Histórico, do que representavam, à frente da Biblioteca Nacional, os outdoors dos dois candidatos presidenciais daquele ano, Sebastián Piñera e Michelle Bachelet.

Não sabia, ainda, que o semanário The Clinic fora batizado em “homenagem” à clínica londrina onde ficou detido Pinochet. A primeira capa que vi aludia a um aumento de combustíveis, mostrando uma bomba de gasolina – com um preservativo. O jornal abusava dos chilenismos, as peculiares gírias tão difíceis de decifrar. A maioria dos amigos chilenos afirmava que não iria votar, pareciam não se interessar pela política – a revolta estudantil dos secundaristas ocorreria apenas no ano seguinte. Yo, por mi parte, aprendia o Espanhol entre Santiago e Valparaíso, entre Pucón e Concepción, caminhando pela Alameda, via que corta a cidade. Mal sabendo tudo que ocorrera ali, mal sabendo que logo tomaria o metrô, todas as manhãs, a caminho da Embaixada do Brasil.

Retornei em 2008 com cinco amigos, para um hostel no bairro Bellavista. Seria divulgado, em meio à viagem, o resultado definitivo do Concurso de Admissão à Carreira Diplomática. Naquele ano havia 115 vagas e, anunciadas as notas das três primeiras fases, estava eu classificado na 116ª posição. A última das quatro etapas era relativa à segunda língua estrangeira, no meu caso o Espanhol. Justamente a nota pendente de publicação, justamente o idioma que aprendera com Neruda. Partira para o Chile, portanto, reprovado.

A nota decisiva foi divulgada quando estávamos no vilarejo de Farellones, no alto da Cordilheira, após longo dia de esqui, de subir a pé o caminho entre as estações de Valle Nevado e do Colorado, quando estive isolado por um par de horas. Interlúdio de íngreme esforço, sob a estranha sensação de que a família – e ela – já conheciam o desfecho, anunciado no fim daquela tarde. Recordo desenhar, nas montanhas banhadas em ocre pelo pôr-do-sol, o clima de festa – ou velório – em Porto Alegre.

No albergue, de embaçadas e silenciosas janelas, os amigos deveriam estar à espera. Não estavam, porém, nem na rua, nem na grande sala envidraçada. Eu caminhava e respirava em câmera lenta, como tudo ao redor: a lareira, a crepitar em tique-taque; a neve, a derreter nas botas; uma dúzia de luvas a secar, a acenar sobre o fogo. Aparece um dos amigos, dá a entender que não, depois que sim, que eu tinha sido aprovado. Surgem os demais, a tripudiar sobre meu desespero. Abraços, sinuca com reggae, cerveja para todo o albergue. Santiago brilhava lá embaixo. Era a segunda vez que eu passava pelo Chile.

Seriam quatro passagens em menos de seis anos. Em 2010 e 2011, parti de Porto Alegre para duas viagens de moto, uma em direção à Patagônia, outra ao Atacama, esta com direito a acidente e registro de renascimento. Naquela primeira, de navio de Puerto Natales até Puerto Montt, cruzara a Cordilheira em direção a Bariloche. No despertar da manhã seguinte, todos no albergue assistiam, mudos, à televisão. Um tremor alarmara os cachorros e os carros, pelo terremoto ocorrido no lado chileno.

Voltei em 2012, após dois anos na Guiné-Bissau. Em abril daquele ano punha os pés no país uma vez mais, a quinta desde 2005, dessa vez em definitivo – se é que existe algo definitivo na carreira diplomática. A tristeza da partida de Bissau era suportada pela alegria da chegada, nessa profissão feita de várias vidas, muitas mortes e tantos climas. A lareira de um pub, a contrastar com o calor subsaariano de poucos dias antes. As impecáveis ruas de Las Condes, com a dor pelo que se passava na Guiné, onde as eleições haviam sido interrompidas por um golpe de Estado.

O Chile mudara, assim como minha capacidade de compreendê-lo. A direita no poder, a política nas ruas: as manifestações gravadas nos muros e vidros quebrados da Embaixada, localizada em frente à Plaza Los Héroes, onde tradicionalmente se encerram os protestos. O Clinic buscado toda manhã de quinta, antes de descer para o metrô. Os chilenismos, aos poucos, mais fáceis de entender, assim como o sinuoso sotaque.

Foram intensas, as primeiras semanas. Shows de Bob Dylan e Fito Páez, as primeiras semanas em um hostel no Bellavista, em um hotel em Lastarria. Poucos dias após a chegada, fui protagonista de meu próprio esquete. O quarto a balançar feito barco, o barulho assustador dos subterrâneos. O manual de etiqueta sísmica manda permanecer imóvel, por isso não pensei duas vezes: desci correndo, sacudido pelas boas-vindas dos 6.4 graus na escala Richter. Acabei em plena Pio IX, rua da boemia turística, de cueca. Por sorte, uma samba-canção.

Naquele outono estreava No, filme sobre o plebiscito que pôs fim à ditadura, prelúdio da catarse do ano seguinte. Fez-se première especial para o movimento estudantil, com Gael García Bernal ciceroneado por Camila Vallejo, a famosa líder e musa universitária. A nova Embaixada trazia grande expectativa, com trabalho e circunstâncias distintas de um posto na África. Logo em junho, porém, fui convocado para trabalhar na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio+20, no Rio de Janeiro, o que adiou a adaptação do início da missão diplomática, fase de ambientar-se, de mapear contatos, contextos, caminhos.

As relações entre Brasil e Chile tinham grande força em áreas como comércio, investimentos, turismo, e aguardava-se definição sobre a possível candidatura presidencial de Michelle Bachelet. Em uma reunião sobre cooperação antártica na chancelaria local, no antigo Hotel Carrera, olho pela janela e revejo o ângulo da imagem do bombardeio do La Moneda.

Assim chegou o ano de 2013. Logo em janeiro, a Presidenta Dilma Rousseff viajou ao Chile para participar da Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), bem como da Cúpula CELAC-União Europeia. Na chegada, como de praxe, o Embaixador Frederico Cezar de Araujo aguarda na pista do aeroporto, os demais diplomatas em posterior fila de cumprimentos. Na manhã seguinte, a Presidenta reuniu-se com o Presidente Sebastián Piñera, no La Moneda. Então na equipe de apoio à imprensa, conheci alguns dos lendários corredores e salões do palácio, imaginando as cenas do 11 de Setembro, dos tantos livros que lera. Já as Cúpulas tiveram a movimentação típica de mandatários e autoridades, em meio à intensa agenda de reuniões de presidentes e de chanceleres. A Presidenta acabou por antecipar o retorno ao Brasil, por força do trágico incêndio ocorrido na boate Kiss, em Santa Maria.

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Idealizado como bloco de cristal a levitar sobre duas fontes, o Museu da Memória e dos Direitos Humanos foi inaugurado na primeira gestão de Michelle Bachelet, em 2010. Sua posição de palco não parece acidental, distante que está do barrio alto. O exterior estampa a Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como a obra Al mismo tiempo, en el mismo lugar, inspirada no último poema de Víctor Jara, escrito na prisão, onde teve as mãos desfiguradas a coronhadas, para que nunca mais tocasse seu violão. Canto, qué mal me sabes cuando tengo que cantar espanto, dizia o verso.

O vão central traz fotografias de vítimas, a voz derradeira de Allende a ecoar pelas galerias, sob as silhuetas de Geometría de la consciência, obra que simboliza o infinito da perda de vidas humanas, tanto para os indivíduos como para a coletividade. A seção El dolor de los niños expõe cartas de filhos de desaparecidos. Uma menina pede à primeira-dama, Lucía Pinochet, que deixe o pai visitá-la na festa de aniversário. Outra menina desenha, diz ao pai estar obedecendo à mãe, comportando-se bem e estudando muito, assim ele não ficaria bravo quando voltasse para casa.

O cenário tem ainda, a poucos metros dali, o centro cultural Matucana 100, onde era montada La imaginación del futuro, peça que reencena o último discurso de Allende. Quando começa a falar – seguramente ésta será la última oportunidad en que pueda dirigirme a ustedes – é interrompido por seus assessores. “Está muito melancólico, Presidente, precisamos de algo mais animado”, diz um deles.

Retratado como frívolo, Allende é interrompido novamente quando diz que la historia es nuestra y la hacen los pueblos. “Não, Presidente, não, quem faz a história são os poderosos; nós, o povo, seremos massacrados impiedosamente”, diz uma inquietante voz infantil. Como teatro total, os atores trazem ao palco um menino de traços indígenas e pedem doações, única maneira de custear-lhe a universidade. Uma atriz insiste, pergunta a um dos presentes se ele contribuiria caso ela tire a roupa; tira a blusa, o sutiã, tenta aproximar os seios do rosto do atônito espectador, mas é contida por um colega.

O diretor questionava a responsabilidade histórica de Allende por forçar os limites institucionais da época. É um dos traços mais controversos do personagem, que tinha “o realismo político nos genes”, segundo o sociólogo Tomás Moulián. Certa vez, ao recordar ter sido expulso de grupo estudantil por ser contrário à criação de sovietes no país, Allende afirmou que “ser jovem e não ser revolucionário é até uma contradição biológica, mas ir avançando nos caminhos da vida e manter-se revolucionário, em uma sociedade burguesa, é difícil”, registrou o biógrafo Jesús Martínez.

A disposição para o diálogo, dentro dos marcos da chamada democracia burguesa, somada à negação do recurso às armas, gerou desconfiança em setores da esquerda sobre o comprometimento de Allende com o socialismo. Questionado por Régis Debray acerca dos que o acusavam de traição à causa, recorreu à sabedoria da antonomásia popular, recordando que o povo seguia chamando-lhe Compañero Presidente. Mostra ainda uma dedicatória de Che Guevara: A Salvador Allende, que por otros medios trata de obtener lo mismo. Afectuosamente, Che. “Por outros meios”, repete ao jornalista.

Há quem, retrospectivamente, considere incompreensível a pretensão de Allende de conciliar forças tão extremadamente opostas. Resistiu até o fim às pressões para aceitar a tese da inevitabilidade da guerra civil, alegando que a violência, uma vez desatada, não mais poderia ser controlada. “A contradição mais dramática de sua vida foi ser, ao mesmo tempo, inimigo congênito da violência e revolucionário apaixonado”, resumiria García Márquez.

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Los estudiantes chilenos, y latinoamericanos, se tomaron de las manos, cantava Víctor Jara nos anos 60. Tempo de efervescência nas universidades, com ocupações de reitorias, demandas por liberdade, confrontos com a polícia. Em 2011 os estudantes retomaram as grandes manifestações, dessa vez para protestar contra o custoso financiamento estudantil, dominado pela banca privada. Contestavam também a obtenção de lucro pelas instituições de ensino, vedada expressamente por lei.

Universitários e secundaristas questionavam ainda o papel subsidiário do Estado no sistema educacional, previsto na Constituição de 80 e mantido no pós-ditadura. Os atos ocorrem historicamente no centro, nunca no barrio alto ou no distrito financeiro, onde estariam os principais antagonistas dos estudantes. As chamadas marchas continuaram nos anos seguintes, e a cada uma delas éramos obrigados a sair mais cedo da Embaixada, situada em área de frequentes conflitos. Gás lacrimogêneo, depredações, ataques aos carabineros que faziam a guarda do Palácio Errázuriz, sede de nossa representação diplomática.

As marchas eram, antes de tudo, celebrações da vida. Ao componente político somavam-se bem-humoradas fantasias, cartazes, teatro de rua. Peças reais e também ocasionais, criação coletiva de impressionante sincronia na troca de cenários: uma dúzia de motos da polícia transitava em velocidade por rua deserta do centro, rua que ainda traz vestígios da chuva de papel picado de minutos antes, fruto da ovação da plateia que, das janelas dos escritórios, aplaudiu de pé as jovens de corpos pintados, que dançavam ao som de batucadas. Estudantes, mapuches, sindicalistas e trabalhadores do cobre reaprendiam a coreografia, juntos após quase quarenta anos, registrou um jornal. Uma menina, alheia ao aparato policial (já que de mãos dadas com a mãe), empunhava pequeno cartaz: marcho porque quiero ir a la universidad. Um casal idoso não se omitia: los abuelos apoyamos a nuestros nietos. Outra senhora ensinava: los cambios los hacen los pueblos, no los gobiernos – Salvador Allende. Logo atrás vem um dos tantos jovens que imitam o figurino do ex-presidente, com bigode e tudo, hypocrités que finge e faz reviver o personagem mitológico.

O dia começava pacífico, mas costumava encerrar-se com violência. Os estudantes alegavam ser vítimas de agentes provocadores e da repressão dos pacos e seus guanacos, como chamam pejorativamente os policiais e o carro lança-águas; a polícia culpava os vândalos, os encapuzados. Esses foram, certa vez, desafiados por uma anciã, quando tentavam destruir um sinal de trânsito. Sempre havia algo a lamentar. O espancamento de um policial, a queima de veículos, um idoso que perde o olho atingido por uma bala de borracha. A escalada da violência levou o Ministério do Interior a determinar que o Instituto Nacional de Direitos Humanos passasse a acompanhar as detenções de estudantes pela polícia.

Localizado em um antigo casarão em Providencia, o Instituto tem a custódia dos documentos relativos às violações de direitos humanos durante a ditadura, coletados pelas diversas comissões da verdade instaladas após a redemocratização. Roteiro do teatro da crueldade, levaram ao encarceramento de dezenas de militares e policiais, entre eles o general Manuel Contreras, ex-chefe da DINA – a polícia secreta da ditadura – condenado a centenas de anos de reclusão e a duas penas de prisão perpétua. Em visita ao Instituto, uma das funcionárias falou-me da frequência com que, nas visitas escolares, uma das crianças levanta a mão e diz yo también tengo un familiar desaparecido! Ela própria teve o avô preso em ilha no extremo sul do país, para onde foram mandados altos funcionários do governo Allende. O episódio foi retratado em Dawson Isla 10, de Miguel Littín, também ele exilado – nessa tragédia não há figurantes.

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Não existe diplomacia à distância. Entrelaçar os sinais dispersos, contextualizar entrelinhas e entreatos, compreender as falas, assimilar o roteiro. Todas elas tarefas do diplomata, que deve ter sensibilidade para identificar os matizes da sociedade onde passa a viver. Desafio que exige diversidade de fontes de informação – e de emoção. O diplomata é equilibrista em teatro circense: espectador, personagem, a dialogar com o elenco e frequentar as montagens. Exerce ainda o papel de crítico, obrigado a manter o distanciamento necessário para interpretar as indicações cênicas. Tudo isso fugindo constantemente de suas próprias afeições históricas, em nome da sagrada moderação.

Formar juízo equilibrado a ser transmitido a Brasília é desafio ainda maior quando da análise da política local, área em que passei a atuar naquele 2013, sob os ensinamentos do Embaixador Georges Lamazière. O Clinic era um dos meios para entender o sentimento dos setores progressistas, onde as nuances costumam receber tratamento mais amigável. O bar fica em um casarão neobarroco de 1925, localizado no bairro Bellas Artes. Em frente à entrada, um quadro-negro registra a frase del día, quase sempre um deslize político, assim como aquelas gravadas nas lápides do pátio interno, que trazem o ano da “morte política” de seu autor. No cardápio, inverte-se o lema pátrio: por la razón o la fuerza passa a ser por la fuerza de la razón.

As sutilezas da democracia chilena foram evidenciadas quando o Clinic recebeu, em sua edição de número 500, mensagens de felicitação de variadas figuras políticas, inclusive Evelyn Matthei e Andrés Allamand, os dois candidatos às primárias da Aliança, a coalizão conservadora tão satirizada pelo jornal. As provocações são constantes nas paredes: sabía usted que la derecha ama al país, pero no tanto los que viven en él?; inauguran tour con los éxitos de Pinochet – comienza en el Cementerio General. No segundo andar, um grande mural do palácio presidencial traz frase de um Allende recém-eleito: debo este triunfo al pueblo de Chile, que entrará conmigo en La Moneda.

O corredor de entrada era decorado, àquele ano, com capas antigas ou cartazes dos quadrinhos inspirados nas gafes do Presidente Sebastián Piñera, as Piñericosas, série que deu origem a best-seller de mesmo nome. Um dos mais famosos lapsos do presidente foi quando declarou, na ilha Robinson Crusoé, que o personagem de Defoe realmente lá vivera, “durante quatro longos anos, em uma história que fascinou o mundo inteiro”. Entrevistado por “Pato” Fernández, diretor do Clinic, Piñera mostrou espírito esportivo e declarou que o semanário, às vezes, “passava dos limites”, mas que a vida exigia amor e humor, um de seus bordões preferidos. Confidenciou, ainda, que suas filhas lhe haviam presenteado com o livro das Piñericosas… Criticado por setores à direita e à esquerda, foi Piñera quem promoveu importantes mudanças no financiamento estudantil, mitigando a supremacia dos bancos privados no sistema.

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A primavera é interlúdio que renova o cenário, que leva do Bellas Artes ao Bellavista, passando pelo cerro Santa Lucía, pelo Lastarria, onde morou Allende. Livrarias, cafés e bares, a arquitetura art decó, o cine arte do El Biógrafo, antigo teatro cujo mapa de assentos é uma pequena tábua de madeira. Da Plaza Lastarria ao imponente GAM, construído para uma reunião da Unctad em 1964, depois sede da Junta Militar, enquanto era reconstruído o La Moneda. Atravessa-se o Rio Mapocho pelo Teatro del Puente, literalmente uma ponte-teatro, pela Ponte Pio Nono ou pela Ponte dos Cadeados, arco de linda vista da cidade.

Logo no Bellavista, em La Chascona, casa-barco de Neruda um dia vandalizada por militares, hoje dos recitais de poetas iniciantes. A poucos metros La Casa en el Aire, da música chilena e latino-americana, do palco que reproduz, em pintura mural, o enorme semblante de Víctor Jara. Joaquín Figueroa cobra a esquerda e a direita, adaptando letras aos cânticos dos estudantes para expressar sua fúria contra ditaduras. Mexe com as mulheres, eleva o coro do bar, chama para a cueca, a dança típica chilena. Compañero Salvador Allende!, grita. Presente!, responde o público em uníssono. Rodolfo Plaza pede Papá cuéntame otra vez, recorda o “presidente louco que no La Moneda deu a vida”, recorda um país distante, mas que segue con los mismos muertos sin funeral.

Tudo tradução da inocência perdida em 1973, como lamentado pela dramaturgia de Patricio Guzmán em Nostalgia da luz. O documentário entrelaça céu e terra, relaciona a astronomia no Atacama com a busca de mães, esposas e filhas pelos desaparecidos no mesmo deserto, onde a ditadura espalhou ossadas. Uma astrônoma, criada pelos avós, vê nas estrelas o mesmo espírito de que foram feitos seus pais, nunca mais encontrados. Os telescópios buscam vida em outros planetas; as chamadas mulheres escavadoras, coveiras de seus amores passados, abrem a terra em busca de luz.

Maus presságios tivera Neruda quando, em 1969, Allende foi indicado candidato da Unidad Popular, a “UP”, às presidenciais do ano seguinte, na sede da Ação Popular Independente, não distante de nossa Embaixada. Quando Allende foi escolhido candidato de consenso, caminhou com os demais dirigentes para unir-se ao mitín, o comício que o Partido Comunista realizava naquele momento, e que acabou por ser o primeiro da coalizão com um candidato comum.

Nenhum dos amigos presentes no bar da casa de Isla Negra diria que Neruda “saltava de entusiasmo” ao receber a notícia pelo rádio de pilha, como conta Jorge Edwards, já que o poeta “vislumbrava o futuro com evidente preocupação”. Na mesma casa saberia ele do suicídio de seu amigo Allende, recorda Jon Lee Anderson em The Dictator, perfil de Pinochet feito para a New Yorker em 1998. Naquele ano, quando o golpe completava 25 anos, Anderson notou persistirem, irreconciliadas, “duas versões conflitantes sobre a história do Chile”. Um quarto dos chilenos reverenciava Pinochet, que seria “a mais rara das criaturas, um bem-sucedido ex-ditador”.

Em setembro de 2013, o número cairia para 8%, redução interpretada como efeito das sucessivas revelações sobre as atrocidades do regime, do reaprendizado da democracia, do polêmico enriquecimento da família Pinochet. Quarenta anos depois, Piñera, que ajudara a financiar a campanha do No para o plebiscito e falava de uma nueva derecha, faria bombástico discurso. Segundo ele, muitos haviam sido “cúmplices passivos” das violações de direitos humanos, entre eles a imprensa e o Judiciário.

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As temporadas sucedem-se, sem fugir do script, enquanto seguem vivas as controvérsias. La conjura (“A traição”), de Mónica González, detalha os mil dias da preparação do 11 de Setembro, período no qual “o sistema político estimulava as expectativas dos setores historicamente excluídos, enquanto o sistema produtivo era incapaz de satisfazê-las”, afirma Carlos Peña no prólogo. Edição revista e ampliada foi lançada em 2013, em um café de Providencia. O município foi governado, de 1996 a 2012, por militar acusado de participação em torturas, que teria prisão preventiva decretada em 2014. Prefeito quando da detenção de Pinochet em Londres, ordenou a suspensão da coleta de lixo nas Embaixadas do Reino Unido e da Espanha, também implicada no caso.

O Once, como o chamam os chilenos, foi retratado por Ignacio Camus em El día en que murió Allende. Reconstituição detalhada do último dia de inúmeros personagens, o livro conta a surpresa do Ministro da Educação, Edgardo Enríquez (avô do candidato presidencial Marco Enríquez), ante a brutalidade com que foi tratado ao ser preso. Um dos sobreviventes daquele dia seria o catalão Joan Garcés, ideólogo de Allende, que o ordenou a deixar o palácio por considerá-lo o mais apto para contar a história do período. Em Allende y la experiencia de la UP – las armas de la política (de 1976 e relançado em 2013), Garcés analisa a correlação de forças que levou à ruptura, dando luz aos debates teóricos no interior do governo. Para ele, a chamada “via chilena para o socialismo” teria sido “a experiência mais moderna de revolução anticapitalista”, por ter como características a plena vigência da democracia, do Estado de Direito e da liberdade de expressão, e por condenar a guerra civil como método para resolver as contradições sociais. Foi o advogado Garcés quem, em 1998, deu início à ação que levaria à detenção de Pinochet, pouco depois de Jon Lee Anderson escrever seu artigo.

O fim da inocência traria o choque de gerações, como retratado por Rafael Gumucio em La grabación, baseada na vida de sua avó, que recorda a época da “UP” como “muito divertida, de festa”, visão de uma peculiar cuica de esquerda – de cuicos, pejorativo usado pelos menos favorecidos em relação aos ricos. Los que nunca pierden, diz a neta ao cobrar da avó explicações pela catástrofe, como se o presente interrogasse o passado, ao som de Les amants d’un jour, de Edith Piaf.

As reminiscências estão em todas as vozes, ainda incrédulas. Seguem em busca de um final diferente; se não feliz, de compromisso. Muitos tentaram convencer Allende a aceitar a rendição e o exílio (o avião “depois cairia”, como ouvido nas conversas entre os golpistas). Conta Camus que Allende já definira seu próprio destino, “por respeito ao povo” e não “por vocação de mártir”. Por não se ver no exílio “pedindo ajuda para algo que não soube defender ou que não estive disposto a defender até as últimas consequências”. E, ao mostrar a taça de licor e a fina jaqueta, complementaria: “não é que eu não ame a vida, mas entendo que há coisas superiores a ela, e se houver um golpe virá uma etapa muito dura, muito longa, e eu, por minha idade e meus hábitos, não serviria para uma resistência clandestina”.

Nicanor Parra satirizou tais hábitos com um verso: “Presidente! O país está que naufraga, e o senhor provando jaquetinhas!/ Jaquetinhas? Toque! São de camurça legítima!”.

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El pueblo, unido, se caga en los partidos, diz um pichador na fachada da ex-sede do Senado, ao lado da Embaixada. Recordaria da estranheza com que, em 2005, ouvira o presidente Ricardo Lagos apelar à população para que evitasse atos de violência na madrugada do Once, o que ocorria todos os anos nas comunas menos ricas de Santiago. Já nas mais ricas, um estudante de medicina vociferou ao ser perguntado sobre Allende. A trama seria sempre de difícil compreensão. Minha mãe gostou de ter visto idosos trabalhando na limpeza das ruas, “sinal de que recebiam oportunidades de trabalho”. Já os funcionários mais velhos da Embaixada lamentaram a reforma previdenciária de 1980 (obra de José Piñera, irmão do Presidente), que privatizou a seguridade social e tornou opcional a contribuição previdenciária (voltaria a ser obrigatória em 2015). Com baixos salários, muitos acabaram sem aposentadoria.

A lógica privada aplicava-se também à educação, à saúde, aos serviços públicos em geral. A segunda candidatura de Michelle Bachelet causou impacto ao questioná-la expressamente, propondo três reformas estruturais: a constitucional, a tributária e a educacional. O programa foi recebido com ceticismo por parte da esquerda, refratária aos governos da Concertación, coalizão que governou o Chile entre 1990 e 2010. Outro tema de constante debate, como questiona Fernando Atría, da equipe de campanha de Bachelet, em Neoliberalismo con rostro humano: a Concertación “administrou” o modelo de Pinochet, moderando-o com maiores preocupações sociais, ou pouco fez, sendo apenas parte do triunfo do neoliberalismo no país?

Para Alfredo Letelier, no pós-ditadura passou-se do “avançar sem negociar” – avanzar sin transar, lema de parte da “UP” – ao “negociar sem parar”, como diz no subtítulo de El Chile perplejo. A Constituição de 1980, pensada para que a minoria de direita mantivesse poder de veto após a redemocratização, criou um sistema de “empate”, de um país incapaz de sair do lugar. Em El pacto, Claudio Fuentes afirma que esse sistema foi mantido com a reforma constitucional de 2005 – que, entre outras coisas, retirou a assinatura de Pinochet da Carta. O novo texto teria cristalizado o condomínio de poder das duas coalizões, bloqueando a possibilidade de novas reformas e causando a atual crise de representatividade.

Assunto que era frequente em festas, jantares, encontros familiares – os camarins da peça. O que cada um havia feito antes, depois do golpe; como se exilaram, como votaram no plebiscito; as inconclusas discussões sobre o que poderia ter evitado a tragédia. Para um ex-deputado, a legislatura no início dos anos 90 foi sua primeira e última experiência, porque o sistema não permitia avanços, afirmou ele em um jantar na casa de Antonio Skármeta, autor do livro que deu origem a O carteiro e o poeta.

Lá estavam bailarinas, escultoras, artistas vários, com sonoplastia da milonga de Killy Freitas, gaúcho que musicava Poeta casamentero, de autoria do anfitrião. Muitos dos presentes eram céticos quanto à possibilidade das mudanças defendidas por Bachelet. Uns anotariam “AC” em sua cédula de votação, em apoio à campanha por uma Assembleia Constituinte. Outros discordavam da estratégia de parte da esquerda, de viés anarquista, a qual fazia a campanha Yo no presto mi voto, defendendo o boicote ao sufrágio. O segundo turno teve 59% de abstenção e 8% de “AC” nas cédulas.

Parra, o antipoeta, pairou sobre as polêmicas ao reler dois gritos tradicionais. La derecha y la izquierda, unidas, jamás serán vencidas!, porque El pueblo, unido, se va a Estados Unidos!, disse ele.

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Reñaca é uma pequena praia próxima a Viña e Valpo, espremida entre o mar e a encosta. Silhuetas de leões marinhos davam contorno ao entardecer, ao lado de uma universidade “tomada” pelos alunos. No al lucro!, dizia a faixa pendurada no portão obstruído por classes. Voltava ao hotel quando li, “manifestantes tentam incendiar Itamaraty”, dizia a manchete. Mesmo habituado às manifestações no Chile, era impossível não receber com choque a notícia, ainda mais dolorosa à distância.

Em Santiago a comunidade brasileira organizou seu próprio ato em frente à Embaixada, que acompanhei junto a outro colega, no início da manhã de um enregelante sábado. Saí pelo portão lateral e passeei, anônimo, entre os cerca de trezentos manifestantes, que promoveram encontro pacífico, com cartazes que exigiam padrão FIFA ou faziam pedidos de trégua. “Senhor Feliciano, não seja rancoroso”, dizia um deles, em referência às polêmicas na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.

Ao diplomata cabe representar o país e atender a cidadãos e autoridades brasileiras. Senadores, professores, deputados, acadêmicos, prefeitos, ministros do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal passaram pela cidade. Lá esteve o então governador de minha terra natal, Tarso Genro, que foi recebido no La Moneda pelo Presidente em exercício, Andrés Chadwick, da UDI, principal partido conservador. A sala de audiências, de alto pé-direito e sóbria decoração, continha duas grandes telas, reprodução de fotografias de Luis Poirot. Em uma delas, Allende saúda o povo de uma sacada do La Moneda; na outra, o mesmo lugar, destruído pelos bombardeios do 11 de Setembro.

No mesmo dia estava em Santiago o Professor Marco Aurélio Garcia, assessor internacional da Presidência da República. Contou histórias do período em que viveu no Chile, entre elas o testemunho da histórica – e para muitos trágica – visita de Fidel Castro ao país em 1971. “Assisti com minha esposa ao discurso que ele fez no Estádio Nacional, mas saímos mais cedo, tínhamos um show do Astor Piazzola”, disse, ao convidar-me para assistir a Chile e Colômbia pelas eliminatórias da Copa. Recusei o convite, explicando que desta vez nós é que tínhamos concerto, noite de Shostakovich no Teatro Universidad de Chile. “Procura a Valsa n. 2 dele, está na trilha do De olhos bem fechados, o último do Kubrick”, despediu-se o Professor.

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Poucas noites foram tão tensas quanto aquela em que se iniciou o fechamento do Penal Cordillera, presídio especial para militares condenados por violações de direitos humanos. Um dos presos cometeu suicídio antes da transferência para outra unidade, gerando revolta da extrema-direita contra o Presidente Piñera, autor da ordem. O drama foi o pano de fundo para a crise do principal partido conservador, a UDI, que mudou duas vezes de candidato às primárias da coalizão. O primeiro deles desistiu, após notícia de que mantinha conta nas Ilhas Virgens; o segundo renunciou, por depressão, dias após ser injustamente acusado de mentir que votara no plebiscito de 1988. Optou-se, finalmente, por Evelyn Matthei, que gerou o surgimento de vídeos, nas redes sociais, que a mostravam participando de sit-in pela libertação de Pinochet, em frente à Embaixada do Reino Unido, em 1998.

A extrema-esquerda, por sua vez, mantinha-se irredutível na rejeição da política de los consensos, en la medida de lo posible, aspectos que marcaram o pós-ditadura. Fiéis à lógica maximalista, não transigiam com o modelo neoliberal, com o Chile S/A, como dizia uma pichação no bairro Paris-Londres, a poucos metros de antigo centro de torturas, hoje um museu. “O Chile é a Coreia do Norte do capitalismo”, dizia um analista na capa do Punto Final.

Apesar da descrença desses setores, a campanha insinuava mudanças sensíveis, com nove candidatos e pluralidade de visões. Além das duas coalizões tradicionais – a Alianza de Matthei e a Nueva Mayoría de Bachelet – havia ambientalistas, empresários, ativistas sociais, professores. Todos tiveram voz nos debates do primeiro turno e igual tempo no horário eleitoral, ainda que o espaço na imprensa tenha sido menos proporcional.

A diversidade traduzia a ausência de consenso em diversas áreas. Enquanto uns recordavam a expressiva redução da pobreza desde o fim da ditadura (de 50% para 15%), outros diziam que a maioria vivia com salário mínimo, que 0,1% detinham boa parte da renda nacional. Havia quem falasse dos sempre movimentados shoppings (“los mall”) e do PIB per capita de quase 19 mil dólares (o maior da América Latina), mas funcionários chilenos da Embaixada riam (no me avisaron, no sé donde está mi parte!). As estradas são excelentes, o metrô melhor que muitos da Europa. As cidades são limpas, há umas tantas estações de esqui. Muitos reclamam, porém, dos pedágios, da lotação do “metro”, da falta de áreas verdes nas comunas pobres, de que nunca terão dinheiro para esquiar. A percepção de segurança ia bem no barrio alto, mas aqueles mesmos funcionários queixavam-se de que em suas comunas a delincuencia era cada vez maior. Um taxista queixou-se a amigo meu, quando o trazia para minha casa, “veja, aqui tem mais polícia do que gente, lá embaixo é que nós sofremos, weón”, disse ele, usando o onipresente vocativo local.

O debate eleitoral concentrou-se, na maior parte, em dois temas fundamentais, a desigualdade e a criminalidade. Temas constantemente assediados, porém, pelo drama subjacente do aniversário do golpe, com os candidatos polemizando sobre diferenças terminológicas – “ditadura” ou “governo militar”? Nos debates, uma ativista por moradias, que bordara seu próprio vestido, afirmou que nenhum de seus contendentes conhecia a saúde pública, por nunca usá-la, por não saber que na periferia os dentistas usavam Super Bonder para literalmente “colar” os dentes dos pacientes. Como diria “Pato” Fernández no lançamento de um livro, era inegável que a economia cresceu e produziu muito nos últimos anos, a questão era discutir como os benefícios estavam sendo divididos entre os cidadãos.

Em meio a tudo isso estrearia o novo filme do comediante Stefan Kramer, Ciudadano Kramer, um toque burlesco à tragédia. No filme, paródia do cenário político, o protagonista faz imitação de Piñera, de políticos, de jornalistas, muitos deles presentes na estreia. Era o que comentávamos nas mesas do Torres, restaurante mais antigo do país, próximo à Embaixada. Em suas paredes de madeira são exibidas fotos de todos os presidentes chilenos – exceto Pinochet.

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“Vieram conhecer a próxima presidenta do Chile?”, perguntou o funcionário da TVN , a mim e à Diplomatriz, ao conduzir-nos para a plateia de El Informante, programa da televisão estatal. Michelle Bachelet entrou no estúdio com passos curtos e serenos, cumprimentando a todos de maneira simpática. Falou de uma nova Constituição, de um novo sistema educacional, de novos parâmetros de tributação das empresas – o país tinha uma das menores taxas impositivas do mundo. Seu programa de governo proporia a criação de uma administradora pública de pensões, pois só havia privadas; uma reforma trabalhista, garantindo o direito de greve e de sindicalização, pois o empregador podia substituir imediatamente o grevista; mudanças na lei do aborto, para permiti-lo em casos de estupro, pois o país tem uma das legislações mais rígidas do planeta; na política externa, daria prioridade à América do Sul.

Boa parte do eleitorado seguia cética quanto às promessas da candidata, refletindo o que se convencionou chamar de “mal-estar chileno”. Pesquisas apontavam que os cidadãos estavam felizes consigo próprios, mas pouco confiavam nos demais ou nas instituições. Em El malestar de Chile, Oppliger e Guzmán questionam, sob viés conservador, se tal percepção era correta, se existia realmente “uma confluência real de fatos que justificasse sustentar que as pessoas estão pedindo uma mudança radical nos modelos econômico e político”. Para eles, tratava-se de visão ideológica. Questionada sobre o tema, Bachelet afirmou que parte desse mal-estar referia-se à crise da representatividade da classe política e das instituições, ao fato de o país encontrar-se em “uma encruzilhada para melhorar a igualdade e a justiça social”, como diria posteriormente.

Uma de suas propostas mais ambiciosas era a alteração do sistema eleitoral, o chamado “binominal”, tipo de voto distrital que favorecia as duas coalizões e, principalmente, a direita. Bachelet também propunha a revisão do papel dos municípios na educação, parte da redistribuição de competências iniciada pela ditadura, que via na ação política a causa da polarização que levou à ruptura de 1973.

A alcaldización (municipalização) da política – título de obra de Verónica Zárate – limitou a participação a temas restritos, “do cotidiano” (como limpeza urbana), com o propósito de conter o debate democrático, o que resultou na perda da perspectiva global pelos cidadãos, bem como na ruptura dos partidos com sua base social. A limitação das competências municipais foi mencionada pela Alcaldesa de Santiago-Centro, Carolina Tohá, em reunião com prefeitos da Serra gaúcha na prefeitura, construção histórica de 1785 localizada na Plaza de Armas. Carolina, filha de José Tohá, ex-ministro de Allende enviado para a Ilha Dawson e estrangulado, em 1974, em um hospital militar.

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Ainda faz frio no inverno chileno. A sala escura do GAM é iluminada por um violão, por um violino que, suavemente acariciados, recordam a melodia de La partida. Saudosismo do tempo da inocência, nostálgico arranjo subitamente rompido com a ruidosa entrada do elenco em cena. Dezenas de atores e atrizes descem as escadarias de um lado e de outro, dançam, batem palmas, tambores e pandeiros, cantam felizes acompanhados pelo público, mi canto es un canto libre que se quiere regalar, mi canto es una paloma que vuela para encontrar

É o musical Víctor sin Víctor Jara, é noite de 15 de setembro, quarenta anos da morte do cantor. Ele ressurge como jovem, como mulher, como desaparecido. O coro deixa o palco em direção à Alameda, empunhando velas e celebrando sua vida, pois el canto tiene sentido, cuando palpita en las venas, del que morirá cantando, las verdades verdaderas. No palco, um ator com familiares desaparecidos. Meses antes a Justiça determinara a prisão de seis oficiais investigados sobre o crime. “Veja minhas mãos, esmagaram-nas para que eu nunca mais toque meu violão”, teria dito Jara a um companheiro de cela, horas antes de morrrer. “Oh, meu Deus, isso é como matar um rouxinol!”, teria declarado Neruda ao saber de sua morte.

O golpe causaria uma fratura social por mais de um século, profetizou Carlos Prats, antecessor de Pinochet assassinado pela DINA. Dois deputados da UDI protestam contra minuto de silêncio em homenagem a Allende, “o covarde que se suicidou”, diz um deles. As exumações de Allende e Neruda são repetidas. No Cemitério Geral, o mausoléu do ex-presidente não longe de Jara, tão próximo do Exército e de Jaime Guzmán, enquanto mais de mil violonistas tocam diante das arcadas, em fins de setembro, no Mil guitarras para Víctor Jara. Na Embaixada, dois antigos funcionários: uma se autodeclara pinochetista; outro conta de sua fuga para a Argentina após o golpe. Em Chile vs. Uruguai pelas eliminatórias da Copa, parte da arquibancada original é preservada, em recordação aos mortos e torturados no Estádio Nacional.

O jornal Clarín, símbolo da esquerda pré-73, retorna em edição especial, com o slogan adotado pelo Clinicsiempre junto al pueblo. A Avenida Once de Septiembre volta a chamar-se Nueva Providencia. Miguel Littín começa as filmagens de Allende en su laberinto. Um septuagenário brasileiro, ex-sindicalista exilado e expulso do país em 73, viaja a convite do Museu da Memória e tem sua entrada negada, por pendências do antigo decreto de expulsão. O site de relacionamentos Ashley Madison pergunta às chilenas: quem escolheriam para um caso, Allende ou Pinochet? O que pensariam eles ao se verem estampados em outdoor, no caminho do aeroporto, com a chamada da pesquisa (Unidos por la Infidelidad)? Allende venceria com 67%, larga vantagem em estranha revanche.

Bachelet vence as eleições. As líderes estudantis Camila Vallejo e Karol Kariola, outrora refratárias a qualquer acordo, elegem-se deputadas pelo Partido Comunista, que volta a integrar uma coalizão de governo – após quarenta anos. A Senadora Isabel Allende, filha do ex-presidente, passa a presidir o Senado, como fizera seu pai. Na Embaixada, a análise enfoca a composição do novo Congresso, que indicará os rumos do país, a viabilidade das reformas. “Que tenhamos uma nova Constituição! Nascida em democracia, que assegure mais direitos, que garanta que no futuro a maioria nunca mais será calada por uma minoria!”, declara Bachelet em seu discurso da vitória, em plena Alameda.

Voltamos aos estúdios da TVN para o especial sobre as eleições. No coquetel, o mesmo contrarregra faz um aceno de cabeça, recordando a previsão. O casal de apresentadores irrompe no estúdio ao som de Wake Up, do Arcade Fire, e provoca ao debate os cerca de trinta convidados – candidatos, congressistas, prefeitos, acadêmicos, líderes estudantis, de movimentos sociais. Um colunista teme, alerta que o novo governo buscará o socialismo, como fez Allende. Muitos riem.

Dias depois, pouco antes do Natal, somos os únicos estrangeiros em uma festa de aniversário. “Este meu primo”, aponta o aniversariante, “foi do Patria y Libertad” (grupo paramilitar de direita que apoiou o golpe). O indicado confirma, “mas era muito jovem, depois do golpe virei hippie e fui para o Brasil”. Outro recorda a uma convidada, “seu avô foi um insigne fascista”. “Mas não apoiou o golpe!”, contesta ela. O mais idoso dos casais veste-se à antiga, ela fala pouco, ele fez carreira na ONU. A esposa, no que parece ser seu papel, insiste para que ele conte. Que foi o emissário da “UP” na contagem dos votos da eleição de 1970, no La Moneda. “Telefonei a Allende, disse que parecíamos ter maioria, mas estava difícil, e ele me disse algo que nunca esquecerei: ‘Compañero, sua missão é garantir nossa vitória!’. Evitada qualquer fraude, telefonei a ele com a maior alegria da minha vida!”, disse, emocionado.

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Os gregos acreditavam sair purificados do teatro, após testemunharem o sofrimento do protagonista. Com ele se identificavam, nele reconheciam a consciência do destino trágico, do qual também não poderiam escapar. Cioso de seu papel, Allende discute com a filha. Critica a todos, idealiza soluções que contrariem a inelutável desventura humana, a inglória luta contra a força que impede ao homem superar sua mortalidade.

Allende capitula. Sucumbe ao choque de elementos inconciliáveis: a peripécia da ação que gera resultado oposto ao pretendido; a ironia do destino, do herói que vê seu plano frustrado. Aceita e confessa seus erros, em busca de redenção. Agradece ao povo pela lealdade e confiança “em um homem que somente foi intérprete de grandes anseios de justiça, que empenhou sua palavra de que respeitaria a Constituição e a lei, e assim o fez”.

Allende chora. Chora sua filha, que em breve cometerá suicídio em Havana. Chora sua companheira, cujo filho desaparecerá em algumas horas. Choramos todos, cientes de que essa tragédia trilhará longo caminho até a catarse, em longos ciclos de compaixão e terror. Sucessivos ciclos de dúvida: terá ele cometido pecado de orgulho e vaidade, erro fatal merecedor de tal castigo?

Coro emudecido, esperamos, quatro décadas depois, o golpe de teatro, o imprevisto que mude a trama, que equilibre a luta que perpassa o tempo. Allende não foge, não recusa o sacrifício para o qual tanto ensaiou. Como herói trágico, sabe-se culpado-inocente, acredita ter procurado o bem. A tensão desemboca na transformação repentina do personagem, que adota, durante o solilóquio final, postura de mártir corifeu, ciente do efeito que causará no público por anos e anos. Despede-se. “Seguramente a rádio será silenciada, e o metal tranquilo de minha voz já não chegará a vocês. Não importa. Seguirão ouvindo-a”.

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O verão ilumina a cidade, acelera o degelo do tempo. Traz ano novo, traz Paloma, que nasce dias depois. Estamos de malas prontas, uma vez mais. O agradecimento aos colegas de Embaixada, a honra do almoço oferecido pelo Embaixador. Amigos que ficam, que chegam, a quem invejo pelos encantos e contradições que ainda sentirão. Sobre o que vi não faço crítica, por amor ao ofício, por respeito aos matizes. Que a tragédia seja gênero em desuso, que os chilenos e chilenas possam superar os traumas o quanto antes. Pesquisas diziam que eles pouco confiavam nos demais, ou nas instituições. Um comercial de café convidava a que fossem mais alegres, mais brasileiros, mais brachilenos. Talvez a catarse ajude, não sei. Yo por mi parte só tenho a agradecer. La pasé la raja, weón!, como diriam eles.

Pensava estar pronto para novas partidas, após deixar Bissau. Era muito mais que isso, porém. Despedia-me de mim mesmo, da versão mais jovem iniciada naquele 2005, que chegara com uma mochila e saía, dez anos depois, com uma paloma. Dizia adeus ao país onde me fiz sul-americano, diplomata, pai. Brachileno. Contemplamos a casa vazia, livre para que uma próxima trupe idealize sua própria mimese. Giro a chave como quem fecha um baú de recuerdos, sabedor de que serão outros, quando revisitados. Quero guardar a cor das lavandas, o cheiro da manhã trazido pelos Andes. Traduzir-lhe, a ela que ainda não faz ideias, a grandiosidade da paisagem, do condor que voa em nossa última foto, em sereno vislumbre de todo o cenário.

Panorama que começa a delinear-se na janela do avião. O Chile, o Atacama, a Patagônia. As tantas trilhas de um lado a outro da montanha, os tantos poemas que agora dão vida e sentido ao mapa. Que fica mais nítido enquanto Santiago se distancia, distancia, distancia, até que o avião faz a curva para a esquerda e atravessa, para sempre, a Cordilheira. Contenho os soluços, nada ouço. Já não diferencio as batidas de coração, se minhas ou da niña que dorme aconchegada em meu peito. Pulsam ao compasso do tambor de La Partida, ao dedilhar do onírico charango que nos leva para longe. Olho para trás, vejo Santiago, vejo as épocas e versões que se entrelaçam enquanto rompemos a quarta parede, a imaginária parede que separa o palco da plateia.

 

REFERÊNCIAS

Anderson, Jon Lee. 1998. The Dictator. The New Yorker. October 19 Issue. Acesso em 7 de abril de 2016: http://www.newyorker.com/magazine/1998/10/19/the-dictator-2

Atría, Fernando. 2013. Neoliberalismo con rostro humano. Santiago de Chile: Catalonia.

Blanco, Fernando. 2010. Desmemoria y perversión – privatizar lo público, mediatizar lo íntimo, administrar lo privado. Santiago de Chile: Editorial Cuarto Propio.

Camus, Ignacio. 2002. El día en que murió Allende. 7ª ed. Santiago de Chile: CESOC.

Castillo, Francisco/Equipo Humorístico The Clinic. 2013. Piñericosas. Santiago de Chile: Ediciones y Publicaciones Bobby S.A.

Fuentes, Claudio. 2012. El pacto – poder, constitución y prácticas políticas en Chile (1990-2010). Santiago de Chile: Ediciones Universidad Diego Portales.

Garcés, Joan. 2013. Allende y la experiencia de la UP – las armas de la política. 2ª ed. Santiago de Chile: Siglo España.

García Márquez, Gabriel. 1973. La verdadera muerte de un presidente. Acesso em 7 de abril de 2016: http://ea.com.py/v2/la-muerte-de-allende-relatada-por-garcia-marquez/.

González, Mónica. 2012. La conjura – los mil y un días del golpe. Santiago de Chile: Catalonia/UDP.

Jocelyn-Holt, Alfredo. 1998. El Chile perplejo – del avanzar sin transar al transar sin parar. Santiago de Chile: Planeta/Ariel.

Labarca, Eduardo. 2007. Salvador Allende – biografía sentimental. Santiago de Chile: Catalonia.

Martínez, Jesús. 2009. Salvador Allende – el hombre que abría las alamedas. Santiago de Chile: Catalonia.

Mönckeberg, Maria Olívia. 2013. Los magnates de la prensa – concentración de los medios de comunicación en Chile. 2ª ed. Santiago de Chile: DeBolsillo.

Neruda, Pablo. 2010. Antología General. Lima: Alfaguara.

_______. 2008. Confieso que he vivido. 7ª ed. Barcelona: DeBolsillo.

Oppliger, Marcel. Guzmán, Eugénio. 2012. El malestar de Chile – teoría o diagnóstico? Santiago de Chile: RIL Editores.

Parra, Nicanor. 2012. Parranda Larga – Antología Poética. 2ª ed. Santiago de Chile: Alfaguara.

Zárate, Verónica. Vallejos, Rolando. Fritz, Karen. 2012. La alcaldización de la política – los municipios em la dictadura pinochetista. Santiago de Chile: LOM Ediciones.

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Diários de Trípoli (I): a Revolução não será grafitada

gaddafi

Muammar Gaddafi ainda é onipresente em Trípoli, mais de três anos após a sua queda. O antigo homem forte da Líbia é retratado em grafites nos muros das regiões mais centrais da capital líbia, principalmente no bairro de Ben-Ashour, onde está localizada a Embaixada brasileira. Para um leigo nas intervenções urbanas como eu, são grafites de dar inveja a Kobra ou aos Gêmeos Pandolfo.

Muammar Gaddafi ainda é onipresente em Trípoli. Mas não como gostaria. O povo líbio aprimorou a arte do insulto a tal nível que retratou Gaddafi das formas mais vexatórias para a cultura muçulmana: como cachorro, na maioria das intervenções, mas também como rato e serpente.

Em um país em guerra civil como a Líbia, contemplar esses grafites de dentro do comboio montado para o traslado Residência-Embaixada-Residência foi a minha única experiência turística em Trípoli – minto, pois dei uma escapadela à Medina e a algumas livrarias do centro da cidade, para o pesadelo dos fuzileiros navais que faziam a minha escolta.

Foi, também, um dos únicos insights que tive junto à psiquê do povo líbio. A profusão de linhas e de cores dos grafites expõe sentimentos represados durante os 42 anos da ditadura do Grande Guia. Ódio, revolta, desejo de liberdade e esperança no futuro. Com efeito, os grafites são uma fotografia da eufórica catarse do povo líbio com a Revolução de 17 de Fevereiro, que acabou com a Jamahiriya. Fotografia distante e apagada, é verdade, mas que nos lembra de que sempre existe alimento para a esperança de dias melhores, mesmo diante de um Saara de desilusão e de um Mediterrâneo de caos.

 

SAIBA MAIS:

  1. Libya — The art of the revolution“, ensaio fotográfico de Rula Bilbeisi Dajani; e
  2. O Silêncio contra Muamar Kadafi“, de Andrei Netto.

 

  • Bruno Quadros e Quadros esteve em Missão Temporária em Trípoli, entre abril e maio de 2014, para servir como Encarregado de Negócios, a.i. do Brasil na Líbia. Dois meses depois, em julho, a Embaixada brasileira seria evacuada para Túnis, em razão da deterioração das condições de segurança na Líbia.
  • O autor agradece a abnegação e o senso de missão do destacamento de fuzileiros navais da Marinha do Brasil, responsável pela segurança do pessoal e das instalações da Embaixada brasileira. Sem eles, não haveria condições de trabalho para o pessoal da Embaixada.
  • Crédito das fotos: Bruno Quadros e Quadros.
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“Brisas de Bissau” – lançamento

capa

Caros amigos,

Dia 1/11, às 15h, “lançamento” das “Brisas de Bissau” na Feira do Livro de Porto Alegre.

Sei que não é possível, mas registro que seria uma honra poder contar com todo mundo lá, para agradecer pessoalmente pela companhia desde 2011.

Encaminho, abaixo, textos da contracapa e da “orelha” do livro.

Grande abraço, Eduardo

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Um jovem diplomata em princípio de carreira, um jovem casal nos primórdios de sua vida em comum, um jovem país às voltas com as primeiras décadas de sua independência… Eis o cenário e os personagens principais desse painel em que Eduardo Mello contrapõe, em uma delicada costura, a missão que o levaria à Guiné- Bissau ao universo, a um tempo mágico e heroico, que por lá encontrou. (…) Curiosamente, em que pesem tantos desafios e ameaças, o que emerge do texto é de uma leveza comovedora. E não apenas por força dos poemas (de grande sensibilidade) com que abre determinados capítulos, mas porque ele consegue narrar suas aventuras com simplicidade e humor, incorporando a elas vinhetas tão surpreendentes quanto pungentes. Eduardo tem igualmente o dom de dar vida a objetos inanimados. À certa altura, a troco de nada, “um pneu de caminhão, à venda na calçada, rebela-se, foge, desvia dos carros e cruza para o outro lado da rua”… Puro cinema.

(prefácio de Edgard Telles Ribeiro)

Sensível, tocante e pungente. Nostálgico, realista e poético. Tem uma beleza delicada e ao mesmo tempo concreta. Verdadeira obra de arte da vida real, que traz a esperança de que o mundo e as pessoas podem ser melhores. Viajamos juntos, sentimos cada brisa, cada alegria e tristeza, mesmo sem tê-las vivido. Sensação de novas experiências, de deixar um pouco de nós em outro canto do mundo e de levar muito dele conosco. Desperta para a grande responsabilidade de ser diplomata, faz de um país, aparentemente sem muita significância no cenário internacional, um local cheio de vida e sonhos. Perspectiva realmente inspiradora. 
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(dos leitores do blog Jovens Diplomatas)
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“Pyongyang Honeymoon” ou O Poder da Banalidade Doméstica

Observação preliminar: Todos os pontos de vista apresentados neste artigo refletem unicamente a opinião do autor. Nenhuma das afirmações, portanto, pode ou deve ser tomada como sendo representativa de posições oficiais.  Quem quer que não consiga compreender essa sutileza sofre de grave dissonância cognitiva e a estes – sejam eles blogueiros ou jornalistas mal-intencionados – eu recomendo fortemente o procedimento da lobotomia.  

O Grande Líder é grande mesmo

Eduardo Siebra, em 24/09/2014 (ano 103 do Calendário Juchê)

Coloquemos da seguinte forma: se eu tivesse chegado à Coreia do Norte sem jamais ter ouvido algo a seu respeito, certamente teria saído de lá com uma impressão muito negativa. Porém, como desde que me entendo por gente escuto coisas horrorosas sobre o país, seus governantes e seu povo, tenho que admitir que encontrei em Pyongyang algo muito diferente do que esperava encontrar.

Decidi ir para lá porque, infelizmente, o Brasil ainda não possui embaixada em Marte. Algumas pessoas entram na diplomacia porque querem ter uma vida boa e morar perto de um lugar onde possam ter acesso fácil a bons croissants e queijos fedorentos. Eu, como venho de uma cidade com tão alto nível civilizatório como o Crato – onde se encontra grande provisão de todas as comodidades mundanas e transcendentais – escolhi essa profissão não pelos brioches, mas por desejar viver uma experiência de alteridade.

Quis ir à Coreia do Norte, portanto, por supor que lá eu encontraria uma realidade radicalmente diferente de tudo a que eu estava acostumado. Esperava encontrar alienígenas, ou pelo menos os habitantes robóticos de uma distopia orwelliana. Claro, não sou desumano a ponto de ter me tornado um turista do horror: o que me motivava não era uma curiosidade mórbida pelo alardeado sofrimento do povo coreano, mas sim o desejo semi-antropológico de compreender a insistência desse país em fazer tudo do jeito que faz.

Posso aqui confessar perante as testemunhas do plano material e astral: o que mais me surpreendeu na minha curta passagem pelo Reino Ermitão foi a banalidade da vida cotidiana que testemunhei nas ruas. Sabem aquelas fotos mostrando largas avenidas cinzentas, sem nenhum carro ou pedestre, e apenas uma intimidadora – mas charmosa – guardinha de trânsito severamente observando o tempo passar? É tudo mentira! Pyongyang é uma cidade cheia de vida – ou, o que dá no mesmo, cheia de gente! E as policiais de trânsito gatinhas trabalham pra caramba, sem jamais perder a pose!

É claro, as crianças estão todas com os uniformes da União dos Pioneiros Socialistas. Os homens estão indo trabalhar vestidos em ternos Mao Zedong. As mulheres desfilam em comportados tailleurs – ou naquelas horrorosas roupas tradicionais coreanas (que cometem o imperdoável pecado de esconder os corpos de algumas das mais belas mulheres da Ásia do Leste). Mas tirando isso, e tirando os carros de boi, os veículos militares saídos diretamente de um filme de época, e a enorme profusão de soldados socialistas – todos prontos a causar as mais terríveis dores de cabeça a eventuais invasores imperialistas que cometessem o erro de tentar ocupar esse bravo e teimoso país – a vida parece seguir normalmente, como em qualquer outro lugar.

Que a verdade seja dita: em Pyongyang não há toque de recolher. Tudo bem, a noite é um breu, porém isso não impede que verdadeira multidão caminhe pelas ruas – totalmente indiferentes ao risco de serem atropelados pelos motoristas que quase não os conseguem enxergar naquele escuro. Também não vi soldados apontando suas metralhadoras para uma população assustada: vi muitas crianças em idade escolar (algumas com quatro, cinco anos) caminhando sozinhas, sem o menor receio de serem vítimas de qualquer forma de violência. Vi grupos de jovens universitários andando animadamente, conversando sobre assuntos que com toda certeza eram da mais absoluta frivolidade. E vi gente dando risada com alguma piada que alguém havia contado.

Não quero, aqui, dar uma de estrangeiro desavisado e ingênuo, e minimizar o peso do que é a vida num Estado como a Coreia do Norte. Talvez mesmo que tentasse eu não pudesse compreender a pressão psicológica que sofrem pessoas que são submetidas, desde a infância, a uma mobilização completa dos sentimentos e do imaginário político. Também não posso dizer que eu tenha conhecido a Coreia do Norte real, já que minha vivência esteve limitada à capital (onde eu podia me locomover livremente, desacompanhado por guias coreanos) e alguns pontos turísticos no interior. Tenho plena consciência de que permaneci nas partes mais simpáticas do país, e também de que não me foi permitido ir muito fundo na compreensão da vida do cidadão comum.

Porém, posso garantir que o pouco que eu vi não foi uma encenação. Os velhinhos não estavam sendo pagos pelo governo para brincar com seus netinhos nas ruas – e, assim, transmitir uma boa impressão aos eventuais turistas que passassem por ali. Os jovens realmente ocupavam os espaços públicos de lazer, e acho pouco razoável dizer que as partidas de vôlei que eu vi eram apenas mais uma sessão de doutrinação socialista por meio da cultura física. O que acontece é que os norte-coreanos são pessoas como nós, e o mero fato de eles viverem num regime que tenta, de todas as formas, desenvolver seu senso de fervor patriótico e sua capacidade de heroísmo não os torna menos simpáticos à ideia de levarem uma vida tranquila e de se divertirem. Talvez eles apenas não possam, como nós, declarar abertamente essa sua inclinação.

São pessoas que vão à escola, que fazem amigos, que namoram, que se preocupam com seus familiares, exatamente como acontece em qualquer outro lugar do mundo. Agora, claro, desde a pré-escola o norte-coreano é exposto, de todas as formas e por todos os meios, à doutrinação da ideologia juchê. No feriado nacional, eles têm que levar flores para a estátua de seus adorados líderes, e todo sábado eles participam de sessões de “estudos políticos”. Muito frequentemente o coreano tem de participar de mobilizações coletivas, tais como cerimônias patrióticas, deslocamentos ao interior para ajudar os camponeses durante a época da colheita de arroz, ou, pior de tudo, excruciantes sessões coletivas de cortar a grama dos espaços públicos usando uma mera tesourinha. Certamente é um povo que trabalha duro, e que está submetido, em média, a esforços e privações físicas muito mais severas do que as que estamos acostumados a ver nos países ditos liberais (e vamos, aqui, em deferência ao bom gosto pequeno-burguês, deixar de lado a complexa mas pertinente discussão sobre a condição dos miseráveis nos países ditos “livres”) . Porém, no tempo que lhes resta, os coreanos estão fazendo coisas banais: passeando com seus bebês pendurados nas costas, tomando soju com os colegas de trabalho, comendo kimchi e contando piadas. Talvez a verdade seja que não dá para simplesmente abolir a dimensão doméstica da vida e impor um estado permanente de fervor ideológico – ainda que seja exatamente isso o que desejam exigir de seus camaradas alguns dos líderes do país.

Esse deslumbramento que experimentei em Pyongyang acontece com diversos estrangeiros que chegam pela primeira vez à cidade. Ele tem até um apelido na comunidade de expatriados: Pyongyang Honeymoon. Há vários fatores que o explicam.

1: A cidade é bonita. Como ela foi arrasada pelos bombardeios americanos durante a Guerra da Coreia, os arquitetos socialistas puderam criar sua cidade-modelo praticamente do zero. Algumas pessoas chegam a dizer que Pyongyang é a única capital 100% socialista do planeta. E embora se possa questionar o bom gosto de alguns de seus monumentos, não há como não admitir que o desenho da capital é impressionante. Seu traçado evoca a todo instante um ideal de grandeza e de heroísmo, mas sem sobrecarregar os espaços públicos com a parafernália socialista (eu diria até que eles, a seu modo, têm lá seu senso de sobriedade). As ruas são largas e arborizadas, há várias praças nas margens dos rios que cortam a cidade e as opções de lazer para a população não são poucas (incluindo parques de diversão, espetáculos circenses, parques aquáticos, boliches, etc). Especialmente deslumbrante é a visão da Torre Juchê iluminada à noite – uma enorme tocha vermelha tremeluzindo em meio às trevas da cidade, eternamente inspirando o povo coreano com o ideal de autossuficiência (vi alguns jovens que iam ao monumento à noite para estudar, não sei se para absorver emanações inspiradoras, não sei se porque a torre é um dos únicos locais permanentemente iluminados da capital coreana, onde os apagões são uma realidade diária).

2: Como já observei, os estrangeiros que chegam a Pyongyang costumam esperar algo muito pior. A quebra de expectativa tem, pelo menos nos primeiros meses, um efeito favorável na opinião do visitante a respeito do lugar. Isso costuma mudar à medida que o tempo vai passando, e à medida que o estrangeiro vai sentindo com mais intensidade os efeitos do severo isolamento a que ele está condenado quando vive na cidade (apenas alguns coreanos credenciados têm plena liberdade de conversar com pessoas de fora, e, por causa da paranoia do regime, mesmo estes não ousariam desenvolver laços muito estreitos com alguém que, em última instância, poderia se mostrar um espião a serviço dos imperialistas ou, pior ainda, um repórter da Veja).

3: Pyongyang é uma cidade que claramente está em transformação. Quando comparada ao que era há quatro anos, a capital parece, segundo o relato dos estrangeiros que a conheceram no passado e no presente, uma cidade muito mais agradável, e com muito mais opções de entretenimento. Embora seja cedo para julgar o significado da chegada do novo líder ao poder, o impacto dessa mudança é visível nas ruas. Há muito mais carros circulando pelas avenidas hoje do que havia a apenas alguns anos atrás. As pessoas parecem se vestir com roupas mais coloridas e casuais (muitas delas fabricadas na China) e a quantidade de restaurantes, supermercados e outros empreendimentos privados é cada vez maior. Para o observador de fora, é excitante ver essas mudanças acontecendo, uma vez que elas evocam a possibilidade de um futuro melhor para o país e seus habitantes. A classe média coreana está crescendo, como uma erva daninha nos jardins do socialismo.

4: O povo coreano é simpático. Não esqueçamos que os do norte são os mesmos que os do sul – tão amados por sua meiguice quase cafona e sua inclinação ao miguxo way of life. As crianças norte-coreanas, em especial, são umas gracinhas. Elas ficam boquiabertas quando avistam nas ruas essas criaturas de cabelos coloridos, olhos redondos e terríveis barbas e narizes! As mais audazes se aproximam e arriscam, com um sotaque extremamente carregado: “– Helooooooo!” Os adultos, também, demonstram muita curiosidade, e fica muito claro pela sua expressão que, se eles pudessem, seriam muito mais calorosos e francos com essas aberrações vindas de fora. Muitos membros da comunidade de expatriados em Pyongyang desenvolvem, ao longo do tempo, intensa antipatia pelos cidadãos do país, uma vez que é muito difícil estabelecer qualquer relação mais próxima e sincera com um habitante local. Porém esse preconceito desconsidera a delicada situação em que vivem os norte-coreanos: como esperar um comportamento franco de alguém que está sendo vigiado pelos seus pares? Sabe-se que a polícia norte-coreana conta com a ajuda de verdadeiro exército de informantes civis, que não hesitariam em delatar comportamentos suspeitos de um potencial traidor. (E não nos precipitemos em julgar o povo coreano como covarde pela sua disposição em denunciar vizinhos reacionários: eles são desde cedo educados a isso, e em sua mentalidade, identificar um potencial inimigo do regime é um dever cívico, mesmo que esse dever possa significar a desgraça de seu vizinho…)

Também é preciso notar que a Pyongyang honeymoon é fruto de uma experiência restrita à capital. A Coreia do Norte tem pouco mais de 20 milhões de habitantes. Em Pyongyang vivem umas 3 milhões de pessoas – incluindo aí praticamente toda a elite política do país. É uma cidade-vitrine, que não reflete as reais condições de vida no campo. Estima-se que um grande percentual das crianças norte-coreanas, em especial aquelas que vivem nas zonas rurais, ainda estejam subnutridas. As condições de saúde e de moradia nas regiões mais ermas são incomparavelmente piores. Ouvi relatos de estrangeiros que tiveram oportunidade de ir ao interior do país – para acompanhar a implementação dos programas de ajuda humanitária – sobre pessoas que eram obrigadas a trabalhar de sol a sol, ao ensurdecedor barulho de alto-falantes que repetiam incessantemente mensagens de doutrinação política. Não quero nem imaginar o que aconteça no nordeste do país – na terrivelmente gélida região onde se acredita que existam as prisões políticas. A Coreia do Norte não é um passeio para os seus cidadãos, e posso garantir que eles são as principais vítimas do sistema que ainda vigora no país.

Ainda assim, acho que essa inesperada simpatia que senti por Pyongyang (e que muitos outros estrangeiros também sentem) é significativa. Por um lado, ela mostra que o relato comumente transmitido sobre a Coreia do Norte pelos meios de comunicação ocidentais é, se não mal-intencionado, pelo menos tendencioso ou desinformado. As condições certamente não se comparam às do sul da península, mas a cidade nem de longe se assemelha ao inferno pintado pelos adversários do regime. Por outro lado, entender que os norte-coreanos são pessoas normais como nós torna inevitável uma importante e esclarecedora questão: por que, então, eles continuam seguindo esse caminho de isolamento e confrontação, que os leva a serem um país com uma das piores reputações do mundo?

A Coreia do Norte, de fato, ocupa no imaginário ocidental o papel do antagonista. Ela é o oposto da imagem que nossa banda do mundo usa para se definir, ou seja, por negação, o país ajuda até mesmo a delinear a própria identidade ocidental. Projetam-se nele todos os pecados aos quais não se gostaria de estar associado, ou seja, as características de um “vilão” ou “psicopata” – alguém sem nenhuma consideração pelo sofrimento dos outros, inclusive pelo sofrimento do próprio povo.

Será que é tão simples? Ainda que possa haver alguma verdade nesse relato, não seria o caso de nos perguntarmos o que leva alguém a se tornar um “vilão”?

Muitos são os norte-coreanos que ficam sinceramente chocados quando descobrem que são vistos no exterior como uma espécie de criminosos. Eles mesmos se consideram um povo heroico – que lutou bravamente contra a dominação estrangeira e que até hoje está tentando afirmar seu espaço de sobrevivência num meio internacional incrivelmente hostil. Não esqueçamos que quando o país foi criado, o comunismo ainda parecia uma boa ideia – em especial para um povo que havia acabado de sair de um regime feudal, seguido pela truculenta ocupação japonesa. Os guerrilheiros coreanos que primeiro aderiram ao movimento certamente estavam inspirados por nobres ideais. O fervor com que eles abraçaram a causa socialista se explica pelo fato de eles realmente acreditarem que estavam cumprindo uma missão patriótica.

A história subsequente é bem conhecida. A realidade não se conformou bem ao sonho utópico de uma sociedade sem classes, e os que começaram sendo os bem-intencionados guias da marcha rumo à igualdade acabaram por se tornar uma nova casta dominante que se viu subitamente diante da terrível contradição de, por um lado, não serem capazes de realizar as promessas de prosperidade antecipadas por sua ideologia e, por outro, de não poderem reverter o processo revolucionário em nome dessa almejada prosperidade, sob pena de serem eles mesmos aniquilados durante a queda do regime vigente. Eles se tornaram, num certo sentido, reféns de um monstro que eles mesmos criaram – e que em mais de uma ocasião gerou a desgraça dos próprios membros dessa elite política (nos assustadores expurgos tão comuns à prática stalinista). E a partir de então eles foram para sempre amaldiçoados pela necessidade de ter que perseguir duramente todos os que tivessem a audácia de cometer a suprema transgressão: dizer a verdade, admitir que o paraíso prometido talvez não fosse assim tão bom…

Longe de mim justificar os atos que já foram praticados em nome da estabilidade do regime ou da perpetuação do ideal revolucionário. Que cada violência cometida contra outro ser humano, independente das motivações políticas subjacentes, esteja para sempre associada não apenas à memória do sistema que o provocou, mas também à de seu autor, da pessoa que individualmente foi o veículo desse mal. Porém acho importante – inclusive como forma de auto-policiamento – tentar compreender que tipo de contexto histórico pode criar uma situação em que inofensivos burocratas se tornam cúmplices de violências legitimadas.

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“O Socialismo também quer lascar você!”

Mais do que uma criação de demônios sanguinários, a Coreia do Norte talvez seja o trágico desfecho de um processo histórico que deu errado. Esse país só foi possível, em primeiro lugar, por causa do delicado equilíbrio de poder que se seguiu à II Guerra Mundial e, em segundo, por causa do que eu definiria como uma espécie de curto-circuito cultural – o florescimento de uma concepção de vida que se mostrou problemática por ter perdido sua conexão com o real, a partir do momento em que a afirmação do ideal utópico tornou-se mais importante do que a sóbria avaliação de seus resultados face aos fatos. Repito: admitir isso não exime ninguém de suas responsabilidades, porém joga uma nova luz sobre as motivações que podem ter levado tantas pessoas a enveredar por esse caminho manchado de vermelho. Aconteceu com elas não porque elas fossem más (o que talvez seja o caso apenas em um ou outro exemplo de criminalidade política intencional e patológica), mas porque aquele contexto histórico favorecia esse tipo de conduta em pessoas normais.

E quem de nós seria presunçoso a ponto de julgar, de forma peremptória, que nós mesmos nos comportaríamos de forma diferente se estivéssemos num contexto parecido? Podemos até nos imaginarmos corajosos, quando estamos longe de constrangimentos como os que se aplicam à vida deles. É fácil demais julgar, no conforto de nossa mediocridade.

Foi essa a intuição fundamental que tive nesse misterioso país. O regime norte-coreano, embora possa ter engendrado o que parece, à consciência ocidental, aberrações políticas, não suprimiu a alma das pessoas. Elas são tão humanas como nós, apenas reagindo a estímulos diferentes. E acho realmente fabuloso perceber que o aspecto da vida que talvez tenha se preservado de forma mais intacta esteja no nível do banal. Na dimensão pública, acho que é justo dizer que a liberdade do homem coreano foi cerceada de diversas formas. Ainda assim – e contra todas as expectativas – os seres humanos preservam suas pequenas e tacanhas aspirações de comer bem, viver com conforto e relacionar-se com um belo exemplar do gênero oposto.

Foi eu vi com meus próprios olhos. Depois de meio século de um regime autoritário, depois da guerra, depois da fome, os habitantes da última utopia stalinista viva ainda brincam com seus filhos no parque, fazem piquenique à beira do rio e jogam vôlei com os amigos. Claro que não são todos os coreanos que efetivamente têm a liberdade de se ocupar tão agradavelmente, mas, por mais duro que sejam as condições presentes, não posso deixar de me sentir otimista quando penso que esses desejos ainda possam estar vivos nos corações de tantos. George Orwell, apesar de suas intuições geniais, talvez tenha errado nesse ponto: os líderes não podem ter controle absoluto. Os totalitarismos políticos de nossa era podem aniquilar, com seu terrível maquinário, toda resistência política e todo livre pensamento. Mas eles não podem substituir de forma definitiva as satisfações e tranquilidades que só podem ser encontradas no espaço doméstico.

Bendita seja a realidade, e bendito seja o povo coreano. Que o futuro traga melhores dias para suas crianças.

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A marcha dos socialistas rumo ao futuro.

 

Nota: Para o caso de alguém ter uma curiosidade insaciável, a versão completa deste texto (com argumentos que não ousei publicar aqui) pode ser lida em meu blog pessoal: Todos os Problemas do Mundo.

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Visita a Fukushima

19 de junho. O Japão ainda estava na Copa, mas nem por isso havia qualquer animação no J-Village, como é conhecido o centro de treinamento da seleção. Inaugurada em 1997, a Granja Comary dos japoneses tem instalações de primeiríssima linha, mas a última vez que os “Samurais Azuis” treinaram por lá foi pra Copa da África do Sul. Em março de 2011, o local foi transformado numa espécie de acampamento-base avançado pra quem ia ou vinha de Fukushima.

A 23 km da usina, o J-Village está na porta de entrada da zona de exclusão, a região a menos de 20 km de Fukushima-I, que teve que ser completamente abandonada em razão da radiação. Sua localização é ainda mais conveniente pois está bem no caminho de Tóquio, de onde vêm bombeiros, técnicos, engenheiros, equipamentos, ordens e… diplomatas estrangeiros, como o grupo que a Tokyo Electric Power Company (TEPCO) decidiu levar pra ver a usina naquela quinta-feira.

Depois de 2h30 de trem desde Tóquio e mais 40 minutos de ônibus, fomos recebidos no J-Village pelo vice-presidente a quem a TEPCO confiou a hercúlea tarefa de desmantelar a usina e tornar a região habitável novamente – trabalho pra mais de 40 anos. Ele começou nos pedindo desculpas pelo transtorno causado desde 2011 e, encarnando a ética samurai, afirmou querer dedicar o resto de sua vida à revitalização da região para, assim quem sabe, voltar a ver o sorriso no rosto dos amigos que fizera quando fora gerente de Fukushima-II (usina vizinha à acidentada Fukushima-I).

Depois dessas e de outras explicações, tomamos o ônibus rumo à usina e logo estávamos na zona de exclusão. Primeiro na parte mais externa, onde os níveis de radiação já recuaram um pouco, e é permitido entrar, mas não residir. Alguns moradores já vão ajeitando as casas, não tão destruídas (o tsunami não chegou a essa estrada), mas castigadas por três anos de abandono. Têm a expectativa de poder voltar pra casa em breve, seguindo os passos dos residentes de Tamura (um vilarejo mais a oeste), que, em abril, foram os primeiros dos 100 mil “refugiados nucleares” a voltar pra casa desde o acidente.

Mais um pouco e chegamos no centro da zona de exclusão, onde ainda está em vigor a ordem de evacuação. Só entram veículos autorizados, que, surpreendentemente, não são poucos: há mais de 5 mil operários trabalhando na usina, todos levados diariamente do J-Village por ônibus da TEPCO. Fora da nossa estrada, porém, o tempo parece ter parado há 3 anos, e o abandono é denunciado pelas casas vazias e campos de arroz tomados pelo mato. Nem sombra do capricho que caracteriza toda fachada, todo jardim, toda calçada, enfim, todo o Japão.

Finalmente dobramos à direita em direção ao Pacífico e logo chegamos à usina. Mais uma vez, o movimento surpreende. Eu esperava ver destruição – e de fato vi -, mas a palavra que primeiro me veio à mente foi outra: construção. O local é um imenso canteiro de obras, com gente entrando e saindo dos vestiários, carros pra lá e pra cá, pilhas de material de construção, tratores, escavadeiras, etc.

Primeira parada: detector de metais. Segunda: equipamentos de segurança. Como o tour seria inteiramente feito a bordo de um ônibus, não nos deram os “escafandros” dentro do qual trabalham os operários; apenas máscara, luvas, pantufas plásticas e o dosímetro, que vai nos dizer quanta radiação teremos recebido até o final da visita.

Depois de novas instruções de segurança, tomamos outro ônibus. O que veio do J-Village não passa do estacionamento, e o que nos levará ao tour não sai da usina. É assim com todos os veículos, pra carregar um mínimo de poeira radioativa pra fora.

Mal demos a largada e nos deparamos com as centenas de tanques que têm sido construídos pra armazenar a água radioativa que se acumula continuamente. Nada menos que 400 toneladas de umidade do lençol freático infiltram-se diariamente no subsolos dos reatores, misturando-se com a água já contaminada usada para resfriá-los. Esse aguaceiro é filtrado, mas alguns elementos radioativos permanecem, daí a necessidade de tanques e mais tanques.

Para tentar estancar essa enxurrada subterrânea, a TEPCO tem um plano audacioso: congelar o solo ao redor dos reatores, de modo a impermeabilizá-lo. Com isso, espera que o lençol freático desvie e chegue limpo ao mar. É uma técnica comum na construção de túneis, mas nunca foi testada na escala que se pretende em Fukushima: o perímetro dos reatores é de 1,5km. Os trabalhos ainda estão em fase embrionária e tudo o que vimos foram escavações e os tubos que serão enterrados e pelos quais circulará o líquido resfriado que congelará a terra. E muitos operários.

Vendo esses trabalhadores, todos cobertos dos pés à cabeça, não conseguia parar de pensar no porquê de estarem ali. Será que têm opção? Sabem dos riscos? (Há relatos de que a Yakuza, a temida máfia japonesa, recruta mendigos e outras “pessoas descartáveis” para trabalhar nas áreas com maior índice de radiação). Ou são forasteiros vindos em busca do salário? (Em 2012, saiu até anúncio em português oferecendo R$ 750 por dia pra retirar entulho da usina. Alguns dos 200 mil decasséguis que moram no Japão chegaram a se candidatar, mas, diante da repercussão negativa, a empresa recuou e acabou contratando só japoneses). Ou querem apenas contribuir para ajudar a tornar o lugar habitável novamente, como o vice-presidente que nos recebeu?

Mais adiante, avistamos o que talvez constitua o marco zero da tragédia (embora muitos digam que a tragédia fosse anunciada e tão antiga quanto a promiscuidade que se estabelecera entre empresas e órgãos reguladores): uma torre que sustentava a linha de transmissão que servia não para escoar a energia gerada em Fukushima, mas para trazer de fora a eletricidade necessária ao funcionamento da usina. Está no chão. Nocauteada já pelo terremoto, quando o tsunami ainda estava em gestação a 180 km dali, foi uma das primeiras baixas e sua queda desencadeou a entrada em funcionamento dos geradores a diesel.

Sobre isso eu já tinha lido e foi muito interessante ver ao vivo, mas meus olhos fugiam das explicações e buscavam incessantemente a direção do mar, onde está o embrião de tantas leituras e epicentro de toda a crise: os seis reatores, três dos quais sofreram com explosões em 2011. Trata-se do ponto mais baixo da usina e, ao nos aproximarmos e lá, a ausência de árvores no barranco e as marcas de terra nas paredes dos prédios denunciavam a altura à qual as ondas haviam chegado: 14 metros, 4 a mais que o quebra-mar e a sala de máquinas, onde os geradores a diesel se afogaram apenas meia hora depois de entrar em ação.

Os reatores estão abrigados em edifícios de 6 andares, cada um em um estágio diferente de reconstrução. Já ganharam reforços estruturais e não há mais escombros por perto, de modo que nosso ônibus pôde se aproximar sem problemas. As imagens das explosões, que cansei de ver na TV, desfilavam na minha mente. Estávamos diante do reator 4 e, do lado de lá da parede de concreto, jaz estocado combustível nuclear usado contendo mais de mil vezes a quantidade de césio que causou o acidente de Goiânia, em 1987. E se o prédio tivesse ruído em março de 2011?

Ao me fazer essa pergunta, eu pensava nos operários que arriscaram as vidas tentando abrir manualmente as escotilhas de emergência, que permitiriam escoar parte do gás hidrogênio que se acumulava. Teriam sido voluntários? Designados? Esbravejavam contra o chefe? Será que pensavam nas vidas que iam salvar, talvez ao custo das suas? Ou só em sair dali o quanto antes? No que quer que pensassem, conseguiram driblar escuridão, calor, inundação e destroços para encontrar a alavanca que, em condições normais, seria acionada do conforto do ar condicionado da sala de controle. Nada disso impediu as explosões de gás, mas, sem essa drenagem de parte do hidrogênio, elas talvez tivessem sido mais fortes – sabe-se lá com que consequências.

Seguindo o tour, passamos pelo prédio de escritórios, hoje abandonado. Pelas janelas pudemos ver pedaços do forro caídos, denunciando a violência do terremoto – o mais forte já resgitrado no Japão. Ao lado dele, está o prédio sem janelas que abriga a sala de controle, e que durante as semanas que se seguiram ao tsunami, abrigou muito mais. Foi ali que aqueles que se arriscaram nos reatores e outros colegas – os “50 de Fukushima”, como ficariam conhecidos – iniciaram uma luta inglória contra um inimigo invisível, enquanto o país ainda focava suas atenções no tsunami – e nas suas 20 mil vítimas – e a palavra Fukushima era apenas o nome de uma província.

“50 de Fukushima” me faz pensar nos “300 de Esparta”. Na verdade não eram 50 e reportagens mais recentes têm dado conta que esses “herois” só não saíram dali antes porque não conseguiram. O pânico desencadeou um “salve-se quem puder” e muitos fizeram como o capitão do Costa Concordia. O governo alega que se não fosse ele a dizer “Vada a bordo, cazzo!”, a TEPCO teria tirado todo o time de campo. A empresa nega e jura que jamais cogitou abandonar a usina.

Espartanos ou Concordianos, fato é que eles lá ficaram por semanas, dormindo no chão e trabalhando com pouca água e comida (e no escuro, até o restabelecimento da força). Da matriz em Tóquio, chegavam instruções contraditórias, entre as quais a de não jogar água do mar nos reatores, cada vez mais quentes. O gerente da usina sabia que o sal iria oxidar as instalações e corroer os bilhões ali investidos, mas sabia também que, na ausência de outro mecanismo de resfriamento, o calor que emanava dos reatores teria consequências explosivas – de fato, teve. Tomou, então, uma atitude muito pouco japonesa, que o elevaria à condição de heroi entre os herois (e atolaria a direção da TEPCO ainda mais no mar de lama que, aos poucos, a crise ia revelando): desacatou as ordens e ordenou o bombeamento de água do mar nos reatores.

Ainda imerso nesses pensamentos, percebi que o ônibus começou a andar. Hora de partir. O motor roncou mais forte pra vencer a rampa que separa os reatores (10m acima do nível do mar) do platô onde está o resto da usina (35m), e era difícil conceber que o mar pudesse ter feito o mesmo, ainda que só até a metade. No trajeto de volta até a entrada, estranhas manchas verdes salpicavam no chão. É uma resina, nos explicaram, usada logo no começo do caos para grudar a poeira radioativa no solo.

Antes de trocar de ônibus pra tomar o rumo do J-Village, passamos por um detector de radiação, pra garantir que não estávamos carregando “sujeira” pra casa e devolvemos o dosímetro. As máscaras, luvas e pantufas foram pro lixo. Seu destino será o incinerador que está sendo contruído ali mesmo na usina.

Já embarcando no outro ônibus, a chuva fina que caía parou e fomos brindados com uma estranha imagem: um arco-íris na direção do mar, bem acima dos reatores. Lembrei das placas que adornam a entrada das duas cidades que, décadas atrás, optaram por abrigar a usina (por referendo), nas quais se lê “Energia Nuclear para um Futuro Promissor”. E vendo o logotipo da TEPCO – que, segundo já li por aí, foi a 3ª empresa com maior valor de mercado do mundo, e hoje está quebrada -, lembrei também do papel timbrado da conta luz, que todo mês me causa uma certa estranheza ao associar meu apartamento, tão limpo e tão longe, àquilo tudo.

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Rapidinhas

Peço um café no Starbucks.
_ Your name, sir? – pergunta a moça do caixa.
Pois é, meu nome é complicado! No Brasil já nem sempre entendem. Acertar a grafia, então… Acostumei-me a responder “Helder-com-agá”, sempre que vão escrever. Fora do Brasil, esquece, se entenderem qualquer coisa já é lucro. Mas, vamos lá, a ver o que sai.
_ It’s ‘Relder’ – nosso R é o H em muitas línguas, ou o J em espanhol. Acho que eles entendem melhor assim do que se eu digo ‘Éuder’, à brasileira — aí me olham perplexos, como se eu estivesse falando uma língua de outro planeta.
_ Sorry?
_ Rel-der.
_ Ok.
Ela escreve o nome no copo e passa pra moça que prepara. Logo mais me entregam. Resolvo ler, por curiosidade, pra descobrir como ela se virou.
“Heldr”.
É, foi bem. Tchecos, né? Vogais pra quê?

………

Juscelino Kubitschek. Kubitschek, essa sopa de letrinhas, é um nome tcheco. O “itschek”, que aqui se escreve “íček”, é um diminutivo – é o “inho” deles. O “Kub” vem de Jakub. Logo: Jacozinho, Tiaguinho, Iaguinho ou Jaiminho em português.

………

Saindo da academia pro trabalho, chuva fina e vento frio, sem guarda-chuva. Um casal me para e pede informação:
– Excuse, me. The Shoppinnng Palladiummm?
– It’s right there. – aponto.
Não tenho dúvidas.
– Brasileiros?
– Sim! – Subitamente contentes – Onde é o Shopping Palladium?
– É aquele prédio rosa ali na frente – digo já tentando ir embora, para fugir da chuva e chegar ao trabalho.
– Obrigado! … De qual cidade?
– São Paulo.
– São Paulo – eles repetem satisfeitos.
Aceno e bato em retirada.
Pois é, conheço minha gente!

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GU x Rollers, o clássico dos clássicos

O futebol de Botsuana – por que não? – também tem o seu “clássico dos clássicos”, ou, como se ouve aqui, “the mother of all derbies”: Township Rollers x Gaborone United. Os dois são times tradicionais de Gaborone: o áureo-cerúleo Rollers foi fundado em 1965, o alvirrubro GU, em 1967. A fundação de clubes de futebol, àquela altura, era mais um produto das grandes transformações por que passava Gaborone, vila empoeirada que deveria rapidamente se tornar cidade, escolhida que foi para ser a capital da República de Botsuana, a que ascendeu em 1966, com a independência, o Protetorado de Bechuanaland, governado pelos britânicos desde Mafeking, na África do Sul.

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O Township Rollers surgiu como clube dos funcionários do “Public Works Department”, sendo o nome “Rollers” uma alusão aos rolos compressores utilizados na construção das ruas de Gaborone . No seu escudo consta também o traçado do novo centro da cidade, cuja edificação estava a cargo daqueles trabalhadores-futebolistas. O Notwane, outro clube tradicional, fundado, como os Rollers, em 1965, apareceu como alternativa menos elitista ao Gaborone Club, clube social frequentado pela comunidade de expatriados que aportavam na futura capital.

GU e Rollers são, juntamente com o Mochudi Centre Chiefs, da vizinha Mochudi, e a BDF XI, de Gaborone, as principais forças do futebol botsuanês. Os Chiefs venceram as duas últimas edições do campeonato nacional, a “Botswana Premier League” (BPL); são um time identificado com a tribo Bakgatla, presente em Botsuana e muito influente na lindeira Província do Noroeste, na África do Sul. BDF XI é o time do exército, a “Botswana Defence Force”; com poucas exceções, seus jogadores são militares, dedicando-se ao futebol quando não estão “on duty”.

Com os Chiefs, Rollers e GU são os mais profissionais entre os times que assim se dizem em Botsuana – a profissionalização do futebol é ainda um “work in progress” no país, razão pela qual deve ser entendida com ressalvas (há poucos dias, jornal local estampava na capa a notícia de que a van dos Chiefs havia sido penhorada, pois a direção não pagara os emolumentos devidos a um feiticeiro que obrava para os sucessos do time). GU e Rollers contam com um homem forte, que lhes proporciona razoável saúde financeira. Possuem sede própria, conquanto lhes falte estádio próprio. Infelizmente, ainda treinam em campos de terra batida.

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O Flamengo de Botsuana, pelo tamanho da sua torcida, os Rollers são também o maior em número de títulos nacionais, tendo triunfado onze vezes na BPL, disputada desde a independência. O GU tem no armário seis troféus do campeonato (um a menos que a BDF XI, segundo maior ganhador).  Grandes em Botsuana, fora das fronteiras não gozam de projeção.

O futebol é, com larga vantagem, o principal esporte de Botsuana. Em 2012, os Zebras, apelido da seleção nacional, alcançaram o maior feito da sua história, a classificação à Copa Africana de Nações, disputada no Gabão e na Guiné-Equatorial. A sensação era de que um novo período do futebol botsuanês se descortinava, no qual os Zebras passariam a ombrear com os grandes do continente. O time, porém, acabou derrotado nas três partidas da fase de grupos, e, desde então, o escrete botsuanês acumula insucessos. Não se classificou para a Copa Africana deste ano, na África do Sul, nem para as “finais” da Copa do Mundo do Brasil (os jogos das eliminatórias são em Botsuana tratados já como jogos de Copa do Mundo). O treinador botsuanês dos Zebras, antes herói pela classificação à Copa Africana, foi não faz muito despedido, imensamente desgastado. Mais do que com a seleção nacional ou os times locais, a vinculação principal do botsuanês médio apreciador do futebol parece ser com a “Premier League” inglesa.

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Em uma quente e nublada tarde de sábado de outubro, em que a tão aguardada pula (chuva, em setsuana) só ameaçou, GU e Rollers duelavam em partida válida pelo primeiro turno da BPL 2013/14. O jogo era disputado no estádio da Universidade de Botsuana, pois o bonito Estádio Nacional – detentor de lugar especial no coração dos botsuaneses, palco da cerimônia de independência – encontrava-se fechado. O GU vinha para o jogo sob pressão, pela fraca campanha no campeonato, e os Rollers, com a esperança de aproximarem-se do topo da tabela.  Recentemente, representantes das duas agremiações compareceram a coquetel oferecido pela Embaixada para abrir exposição de fotos sobre o futebol brasileiro. Em conversa animada, que não sugeria estar-se diante da maior rivalidade do país, o Major Bright, técnico do GU e figura célebre do futebol botsuanês, conhecido tanto pela competência como pela boina que costumeiramente traz à cabeça, discorria sobre o curso para treinadores que frequentara no Brasil; o Sr. Somerset, diretor dos Rollers de fala tranquila, referia-se com orgulho ao seu novo atacante, joia recém-chegada da Namíbia.

O estádio da Universidade, que senta 8 mil pessoas, estava praticamente cheio, rara aglomeração de público em uma país repleto de vazios na paisagem. Aqueles que diziam que os Rollers arrastavam multidões estavam certos: mesmo sendo o GU o mandante,  o estádio vestia-se predominantemente de amarelo e azul. O clássico era um evento de locais, em que, nas conversas, nos cânticos e nos xingamentos, só se ouvia o setsuana. O treinador sérvio dos Chiefs foi facilmente identificado em uma das arquibancadas, espreitando os Rollers, seu adversário da semana seguinte.  O Major Bright, surpreendentemente, não portava a sua boina, mas terno e gravata, sem faltar o escudo do GU sobre o bolso.

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Engajadas no jogo, as duas torcidas participavam, embora não faltassem os personagens exuberantes, estranhamente fantasiados, que, em transe, ficam a cantar e dançar, sem muito se importar com o campo. Os Rollers haviam inaugurado o placar cedo no jogo, pelos pés de Jerome Louis, a joia namibiana do Sr. Somerset, e, com aquele resultado, a possibilidade de o Major Bright perder o emprego, aventada nos jornais, era real.  O jogo já se encontrava nos descontos, e um daqueles personagens, torcedor-profeta dos Rollers, abordava os presentes, apontando para certo trecho da sua bíblia em setsuana, como a dizer que a vitória estava escrita. Nesse instante, foi contradito pelo GU: no apagar das luzes, 1×1, placar final.

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